Atividades que costumavam ser prazerosas, como a leitura, se tornaram mais complicadas; tarefas domésticas e necessidade de se adaptar a uma rotina interna têm limado essas práticas
Mateus Baldi*
06/06/2020 - 08:00
Quem
está levando a sério a quarentena já sabe: atividades que
costumavam ser prazerosas, como ler e ver filmes, se tornaram mais
complicadas. Por mais que exista a perspectiva de um “tempo livre”,
as tarefas domésticas e a necessidade de se adaptar a uma rotina
interna – em todos os sentidos – acabaram por limar um pouco da
alegria de pegar um livro e se esquecer do mundo. Contudo, quis o
destino que o Brasil enfrentasse a maior emergência sanitária dos
últimos cem anos em meio a uma crise política.
Pensando
na primeira dica deste Livros da Quarentena, cuja proposta é indicar
obras que ajudem a atravessar este período por aproximação ou fuga
do vírus, decidi ler Elena Ferrante: uma longa experiência de
ausência, escrito pela psicanalista e crítica literária Fabiane
Secches, com ilustrações de Talita Hoffmann. Publicado pela editora
Claraboia, trata-se do primeiro trabalho de fôlego no Brasil a
esmiuçar a obra da autora italiana.
Ao
longo das quase 300 páginas escritas com evidente entusiasmo pelo
objeto de estudo, muitas vezes o livro se parece com um híbrido de
material acadêmico e espírito de almanaque, mantendo acesa a
vontade de correr à prateleira e folhear Elena Ferrante – o grande
prazer da leitura acaba sendo identificar e re-decodificar na
narrativa original os signos apontados por Fabiane Secches.
Lá
ia eu me aproximando do final quando tive o estalo: considerando-se a
extensão da quarentena, por que não indicar uma série inteira? Por
que não a Tetralogia Napolitana, catalisadora de um fenômeno
conhecido por Febre Ferrante? Motivos não faltam.
Assim
como a crise que assola o país, Elena Ferrante é caudalosa, está
em todo lugar, é alvo das mais diversas interpretações e exige
atenção máxima de quem se dispõe a mergulhar nas suas águas
turvas. Em sua narrativa, nada é muito claro e tudo que deseja
resistir é traído por seu duplo, invariavelmente mais sombrio.
Best
seller absoluto, a tetralogia ajuda a compor um poderoso painel da
Itália e do mundo nos últimos setenta anos. Narrados por Elena
Greco, a Lenu, os livros recontam sua vertiginosa amizade com
Rafaella Cerullo, a Lila, que desaparece já na velhice.
Para
além do componente regional, Elena Ferrante consegue dar a seus
personagens uma dimensão universal, transportando para Nápoles
problemas ainda contemporâneos – machismo, casamentos
estraçalhados, maternidade, política enquanto agente fragmentador
das relações humanas, luta de classes: está tudo ali pelos olhos,
gestos e voz de personagens escorregadios, cheios de camadas prontas
para ruir a qualquer instante.
Em
tempos de pandemia, poucas indicações são mais seguras do que as
quase 1700 páginas que englobam A amiga genial, História do novo
sobrenome, História de quem foge e quem fica e História da menina
perdida, editados pela Biblioteca Azul. Para aqueles que já leram a
tetralogia, o livro de Fabiane Secches é uma novidade dupla: ao
mesmo tempo em que revigora a amizade de Lenu e Lila, oferece a
oportunidade de retornar ao velho bairro e testemunhar por outros
ângulos a gênese da miséria, da ruína.
“Está
acontecendo algo de grandioso, que vai dissolver completamente o
velho modo de viver”, escreve Ferrante em História de quem foge e
quem fica. Está certa. Passam os vivos, as guerras, os vírus, mas
não diminui nunca a vontade de ler boas histórias. Como seus
livros. E o de Fabiane.
Fiquem
em casa. Boas leituras.
*Mateus
Baldi é escritor e jornalista. Criou a Resenha de Bolso, voltada
para a crítica de literatura contemporânea, e organizou para Época
as edições literárias É tudo mentira e Ilusões de férias.
Elena
Ferrante – Biblioteca Azul
A
amiga genial, 336 páginas, R$ 59,90
História
de quem foge e quem fica, 416 páginas, R$ 59,90
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